domingo, 6 de fevereiro de 2022

Guerra e paz

Após 150 anos da guerra civil americana o país enfrenta nova epidemia de drogas iniciada na década de 1990 e, segundo dados recentes, deixou mais de 100 mil mortos por overdose entre abril de 2020 e abril de 2021. Historiadores traçam paralelos nas duas crises pelo fato de ambas iniciarem com medicamentos legais prescritos por médicos, se estendendo por várias décadas e deixando milhares de mortos. Jonathan Jones, professor do Instituto Militar da Virgínia, pesquisou arquivos médicos, diários pessoais, registros de serviço militar e pedidos de pensão, entre outros documentos do século 19, reconstruindo vida e morte de 200 soldados dependentes químicos na Guerra Civil e concluindo que "a maioria morreu de causas ligadas ao abuso de opioides", sendo que o estudo da origem e impacto da crise resultou no livro Opium Slavery, 'Civil War Veterans and America's First Opioid Crisis' ou "Escravidão do Ópio, Veteranos da Guerra Civil e a Primeira Crise de Opioides da América" livro a ser lançado em 2023. No entanto, nos informa que os "opioides eram amplamente usados nos EUA antes da Guerra Civil", sendo que no século 19, ópio e substâncias derivadas, como morfina e láudano, mistura de ópio e álcool, eram medicamentos comuns no país e assemelhados, vendidos sem restrições e recomendados por médicos para tratar problemas de saúde, como cefaleias, cólicas menstruais, febre, tosse, diarreia e insônia, podendo ser consumido sob forma injetável, pó ou comprimidos. Ressalva que as substâncias eram legais, acessíveis e baratas, serviam como ingrediente à outros remédios, comercializadas em lojas de departamentos como  Sears ou Roebuck & Co, podendo encomendar kits com a droga e seringas e receber a mercadoria pelo correio, sendo que "só no início do século 20 os narcóticos começaram a ser regulados nos EUA".

A disseminação da utilização dos opioides se evidencia no início da Guerra Civil, em 1861, quando principalmente a morfina, passam a ser amplamente usados para aliviar dor dos feridos explodindo o número de prescrições. Fato é que o conflito entre União e Estados Confederados deixou mais de 700 mil mortos com sobreviventes lutando por superar ferimentos graves, amputações e sequelas permanentes, além das péssimas condições sanitárias dos campos de batalha levando a diarreia, disenteria e doenças que debilitavam os soldados, muitas vezes fatais, também tratadas com opioides. Em decorrência, soldados usavam as substâncias para se automedicar e combater medo e estresse antes das batalhas, conforme afirma Jones que "milhões de soldados da Guerra Civil sofreram problemas físicos, ferimentos a bala, amputações, lesões traumáticas e não havia muito o que os médicos pudessem fazer além de oferecer analgésicos". O cirurgião Silas Weir Mitchell, do hospital Turner's Lane, na Filadélfia, escreveu que em apenas um ano cerca de 40 mil injeções de morfina foram aplicadas em soldados naquele estabelecimento, com altas doses de morfina três vezes/dia. Segundo o manual, cirurgiões militares deveriam usar opioides para aliviar a dor dos feridos, tratar de vômitos, diarreias, sangramentos internos, inflamação de ferimentos a bala e espasmos musculares nos amputados e até mesmo para sedar pacientes.

Moral da Nota: ao retornarem à casa, continuaram usar morfina e outros opioides para aliviar dores e problemas crônicos resultantes da guerra, sendo que "muitos desses ferimentos nunca foram curados, eram lesões que causaram dor para o resto da vida", sendo que relatório da comissão de saúde do Estado de Massachusetts em 1872 afirmou que "soldados que adquiriram o hábito em hospitais militares ainda estão dependentes do uso de ópio". Em 1889, 25 anos depois do fim da guerra, James Adams, médico, escreveu sobre o "grande número" de veteranos que com diarreia crônica e "como era de se esperar, se tornaram comedores de ópio" e, muitos que se curaram completamente dos ferimentos e doenças contraídas na guerra, já estavam dependentes e mantiveram o uso de opioides, facilmente obtidos sem restrições. Após a guerra, o problema tornou-se epidemia de proporções nacionais, não havendo números exatos, mas, historiadores relatam que centenas de milhares de americanos enfrentavam dependência de opioides no final do século 19, com o detalhe da crise afetar a população geral especialmente mulheres, sendo que a atenção da imprensa e da sociedade se concentrava nos ex-soldados dependentes. O drama dos soldados provocava críticas, como ex-combatentes, antes respeitados pelos sacrifícios na guerra, passaram a ser humilhados e vistos como imorais, fracos e sem força de vontade para deixar o vício, sendo que overdoses eram noticiadas como culpa dos dependentes. Supostas curas para dependência se transformaram em indústria milionária com produtos como o “antídoto” S. B. Collins anunciado nos jornais, além de muitos tentar se livrar da dependência por conta própria e, não suportando sintomas da abstinência, recaiam, algo recriminado pela sociedade da época. "Por volta de 1890, a situação começou a mudar com a sociedade passando a ser mais solidária com os veteranos dependentes" e, segundo Jones, "época que o governo americano começou a proibir o uso de ópio entre imigrantes chineses" lembrando da substituição dos ex-soldados por chineses como alvo das críticas da sociedade. O Historiador conclui que "gradualmente, o governo, médicos e ativistas de proteção ao consumidor adotaram medidas de auxílio na solução da epidemia, tarde demais aos veteranos da Guerra Civil".